Os Dramas da Liberdade
A teoria sartreana do ser-para-si conduz a uma teoria da liberdade. O ser-para-si define-se como ação e primeira condição da ação é liberdade. O que está na base da existência é a livre escolha que cada homem faz de si mesmo e de sua maneira de ser livre. O em-si, sendo simplesmente aquilo que é, não pode ser livre. A liberdade provém do nada que obriga que obriga o homem a fazer-se, em lugar de apenas ser. Desse princípio decorre a doutrina de Sartre, segundo a qual o homem é inteiramente responsável por aquilo que é; não tem sentido as pessoas quererem atribuir suas falhas a fatores externos, como a hereditariedade ou a ação do meio ambiente ou a influência de outras pessoas. Por outro lado, a autonomia da liberdade, enquanto determinação fundamental e radical do ser-para-si, vale dizer do homem, faz da doutrina existencialista uma filosofia que prescinde inteiramente da idéia de Deus. Sartre tira todas as conseqüências desse ateísmo, eliminando qualquer fundamento sobrenatural para os valores: é o homem que os cria. A vida não tem sentido algum antes e independentemente do fato de o homem viver; o valor da vida é o sentido que cada homem escolhe para si mesmo. Em síntese, o existencialismo sartreano é uma radical forma de humanismo, suprimindo a necessidade de Deus e colocando o próprio homem como criador de todos os valores.
Ao lado das análises volumosas e rigorosamente técnicas de O Ser e o Nada, nas quais se encontra exposta a filosofia existencialista, Sartre expressou seu pensamento através de várias obras literárias, que o colocam como um dos maiores escritores do século XX. Nelas encontram-se todos os temas fundamentais de sua concepção do homem, realizados nos planos concretos da personagem, suas ações e suas situações existenciais.
Antoine Roquentin, personagem principal de A Náusea (1938), vive sozinho, sem amigos, sem amante, nada lhe importando, nem sequer os outros homens, nem ele mesmo; o mundo para ele não tem nenhuma razão de ser e é absurdo porque composto de seres em-si: a cidade, o jardim, as árvores.
Pablo Ibietta, republicano espanhol, personagem central de O Muro, vive uma das “situações-limite” descritas por Sartre: momentos de intensificação de conflitos sociais e individuais, quando o homem é obrigado a fazer uma escolha e afirmar sua liberdade sua liberdade radical. Pablo Ibietta, preso e torturado pelos fascistas de Franco, vê postas à prova as virtudes da coragem, fidelidade e sangue-frio. O próprio Sartre viveu uma dessas “situações-limite”, quando preso num campo de concentração nazista, em 1940, do qual conseguiu fugir, fazendo sua escolha: participar da resistência ao invasor alemão.
O problema da ação e da liberdade constitui o tema da trilogia de romances Os Caminhos da Liberdade. No primeiro, A Idade da Razão (1945), as questões individuais predominam, a história e a política são panos de fundo. Mathieu Delorme, jovem professor de filosofia, procura a liberdade pura, sem compromisso de qualquer espécie; Brunet, ao contrário, personifica a renúncia da liberdade pessoal em favor do engajamento político; Daniel ilustra a tese gideana da liberdade como ato gratuito, sem qualquer motivo; Jacques abandona os sonhos juvenis de liberdade para casar-se, ter um trabalho, viver uma vida “regular”. No segundo volume da trilogia, Sursis (1945), os acontecimentos políticos revelam que os projetos de vida individuais são, na verdade, determinados pelo curso da história, tornando-se ilusória a busca da liberdade num plano puramente pessoal: a liberdade é sempre vivida “em situação” e realizada no engajamento de projetos voltados para interesses humanos comunitários. Apenas um compromisso com a história pode dar sentido à existência individual. Em Com a Morte na Alma (1949), último romance da trilogia, Mathieu ilustra a tese do engajamento gratuito; ele arrisca a própria vida apenas para retardar algumas horas a investida das tropas alemães.
Outras obras literárias de Sartre ilustram as teses existencialistas. Canoris, personagem da peça Mortos Sem Sepultura (1946), é um homem de ação, pronto para enfrentar a morte pela causa da liberdade. Hugo, nas Mãos Sujas (1948), é um intelectual da classe média, engajado no Partido Comunista, não por convicção, mas para satisfazer sua necessidade de ação. Na peça O Diabo e o Bom Deus (1951), Goetz é um nobre da Idade Média que abandona seus privilégios para fazer o bem aos camponeses. Inspirados nesse exemplo, os camponeses rebelam-se contra todos os senhores feudais e empregam a violência. Goetz acaba por concluir que, para transformar o mundo, a violência, as vezes, é necessária; é preciso “ter as mãos sujas”, para combater a opressão; o Bem abstrato e sobrenatural nada consegue realizar, só o próprio homem é criador de sua liberdade.
Sartre, Jean Paul. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. XI e XII.
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